Estou indo pegar ônibus de viagem na rodoviária pro feriado e roubaram minha carteira em Niterói, por isso estou usando a carteira de trabalho como documento com foto pra poder viajar.
Ao olhar pra foto lembrei de um comentário que já recebi muitas vezes: “Se alisar o cabelo, fica branca.” Isso gerou diversas reflexões que vou compartilhar com vocês agora.
Minha carteira de trabalho feita aos 15 anos, na época em que eu alisava o cabelo.
É muito contraditório olhar minha história de vida, eu confesso. A influenciadora controvérsia Livia Zaruty costuma fazer postagens me chamando de “sinhá”, de “menina branca”. Pois bem, vejam a aparência dessa sinhá que, desde os 15 anos, já precisava trabalhar e registrava isso oficialmente em sua carteira profissional.
Dias atrás, um homem mulato fez uma postagem me criticando por eu não ter feito uma publicação sobre o caso Poze do Rodo. Nos comentários, uma mulher também mulata, apenas com traços um pouco mais marcados e cabelo mais crespo, me chamava de “branca encardida”. O dono da página aplaudia. Dançava em volta da fogueira que ele mesmo acendeu para queimar uma semelhante. Também tem um influenciador aqui no instagram, mulato mais claro, semelhante ao meu fenótipo que sempre faz vídeos sobre ser um pardo contra Parditude. Já devem ter me mandado uns 10 vídeos diferente, no mínimo, dessa figura batendo nessa mesma tecla.
O discurso da hipodescendência vem sustentando no Brasil uma permissividade para que muitos possam viver e gozar do seu ressentimento contra a miscigenação em paz, e se possível, descontando nos corpos mestiços sem culpa nem consequência.
Muitas pessoas defendem que pardo é negro pra poder assim materializar seu ódio contra a existência mestiça, por meio da negação dessa realidade. Os próprios mestiços vivem isso também. Aqueles que rejeitam a própria história passam a viver uma espécie de “mea culpa” constante, falando mal da menina Parditude, afirmando o slogan que somos uma nação filha de estupr* pra ganhar aprovação dos negros e, quem sabe, a dose de negritude que sabem faltar em seus corpos. Torcem pra que assim passem despercebidos e as pessoas dos movimentos esqueçam que eles são pobres coitados mulatos, filhos do “pecado” da impureza brasileira.
As consequências sociais desses discursos têm moldado um tipo muito peculiar no que se convém ser chamado de “antirracismo” no Brasil: protegendo indígenas e negros enquanto multiplica ao quadrado o desconforto categórico para os pardos, que vivem um verdadeiro hospício. Uma pessoa chamada de sinhá por uns e escrava por outros se protege como? Em que delegacia registraremos esses crimes? Vai ter banca de heteroidentificação na delegacia? Não existe preparo e muito menos disposição pra desenvolver estratégias, a tática é negar, fingir que nada disso existe, humilhar constranger e tentar silenciar a todo custo a mulher que denuncia esses absurdos: a menina da parditude.
Se você é pardo, te garanto: tem que segurar o tranco. Precisamos ter cabeça de ferro, porque nunca sabemos de onde virá a próxima porrada. E ela virá. E, ainda assim, seguimos.
Confesso: é uma honra seguir na contramão desse pacto de insanidade. Porque, neste país, ser parda, ser feliz e amar o Brasil é uma vitória.
E aproveitando o gancho pra falar sobre contramão e sobre vitória: outra questão que queria conversar com vocês há um tempo é sobre o quanto me oponho ao padrão da militância contemporânea de se agarrar ao “Estatuto da Vítima”.
Sempre vou lutar pelas pessoas pardas e denunciar o que sofremos baseado em fatos concretos, mas também vou insistir para que a gente não se esconda atrás da dor, nem da identidade. Todo esse discurso pautado apenas em dor e coitadismo gera o mulato que se odeia e quer ser negro a todo custo, gera o Brasil que se odeia e quer reverter o passado e se tornar puro – nem que seja na base da canetada- a todo custo, entre outras consequências.
“Pardo é negro” costuma ser justificado com base no racismo: como estatísticas mostram que pardos sofrem racismo, então, por falsa lógica, seriam negros. Mas o racismo não deve definir o que é ser negro, e muito menos o que é ser pardo. Se uma camada dos que articularam esses movimentos querem ser definidos tendo racismo como maior direcional, problema deles.
Quero cada vez mais desvencilhar desses discursos tão vitimizados pra focar no fato de que a missão da Parditude é contar a história mestiça. Não se limitar ao racismo que o mestiço sofre. Não pode se resumir a papagaiar sobre opressões, dores, choradeira e estatísticas de um grupo que – sim- precisa de direitos específicos, mas precisamos fazer mais que isso.
Parditude é sobre narrar, registrar e valorizar os corpos, as experiências, os sentimentos, os conflitos, as vivências e os acontecimentos que compõem a história multirracial. Porque essa é a história do Brasil. Fomos injustamente convidados ao silêncio. A não nomear, a não diferenciar, a não expressar. A calar. E a aceitar.
Apesar de toda a dor e das contradições, é maravilhoso ser uma pessoa parda. Ta vendo essa menina aí da carteira de trabalho na primeira foto? Apesar do racismo, da situação fodida de vida por sua identidade e por tantas outras questões, ela fez o corre dela, mora na cidade mais linda do mundo, distribui sorrisos e vive lindos momentos. Mano Brown recomendou trabalho dela dia desses… Sempre com muitas mãos estendidas pelo caminho, mas com muito trabalho duro.
Nossa, mas uma mulher, parda, bissexual, de origem periférica, macumbeira, com síndrome do pânico, corintiana, etc etc etc… que sofridinha né?
Temos que tomar muito cuidado com isso… Com como essas etiquetas vão tirando nosso poder… elas devolvem poder quando entendemos sociedade como ela está atualmente e aquilo que está fora do nosso controle, mas elas tiram o nosso poder se deixamos de agir em nossas vidas dentro do que está em nosso controle por estarmos escorados nelas…
Vamos atrás de nossos sonhos, vamos se cuidar, vamos lutar por um país mais justo pra todos nós, não só por quem tem os mesmos marcadores de identidade que nós.
Vamos continuar trabalhando duro, como a Beatriz de 15 anos que tirou sua carteira de trabalho para ser operadora de caixa e passar anos nessa profissão lutando por uma melhor oportunidade. Vamos estudar, vamos criar, vamos propor projetos de transformação amplos pra nossa sociedade.
E que a realidade multifacetada do pardo nos inspire a viver incomodando com a contradição: com coragem, com brilho próprio, e com orgulho de existir.
Nem o racismo, nem o rótulo da hipodescendência apagam o ouro que cintila na pele mestiça do Brasil.
A paisagem mais bela de nossa natureza é a mulata e sua beleza (im)pura.


