O dia que entendi porque existem pessoas pardas que preferem se identificar como negras – Parditude por Beatriz Bueno

É horrível demais olhar para aqueles objetos de tortura e saber que meus ancestrais sangraram aqui, mas que meus outros ancestrais também fizeram sangrar.

Na semana passada, tive a honra de conhecer a cidade de Bananal, no interior de São Paulo, com minhas tias. Bananal é uma cidade histórica que preserva um centro com construções do século XIX e mantém diversas fazendas do período colonial, algumas transformadas em museus ou estúdios de gravação de novelas de época. Antes mesmo de ir, já estava preocupada com a forma como seriam tratadas as histórias das pessoas escravizadas.

Sou uma entusiasta do passado – não à toa o Parditude existe – faz parte de quem sou revisitar o passado para poder escrever um futuro melhor. Desde criança, adoro revisitar a história, assistindo a novelas de época e visitando museus de antiguidades. No entanto, após adquirir consciência racial, minha perspectiva mudou. Ainda gosto de visitar museus, mas agora entro neles já angustiada, pensando em como, e se, a história das pessoas escravizadas que construíram esses casarões com as próprias mãos será retratada.

Já me acostumei com o padrão de omissão em museus como o do Ipiranga, em São Paulo (antes da reabertura, pois ainda não o visitei após a reabertura), o Solar Monjardim, em Vitória, e a Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, onde quase finge-se que a escravidão não existiu. Os porões das casas, onde ficavam as senzalas, são transformados em áreas administrativas ou outras coisas, ignorando completamente a história e falando apenas da vida mansa dos ex-donos moradores desses locais.


Quando estava no nono ano, tive a oportunidade de visitar a Fazenda Ibicaba, em Cordeirópolis, a única que conheci nesse modelo que preserva uma senzala. Nessa senzala, havia uma corrente pendurada no teto e, na época, com 13 anos de idade, coloquei a corrente no pescoço enquanto as pessoas tiravam fotos. A inconsciência é cruel e custa caro; ainda bem que perdi essa foto e espero que meus colegas também tenham perdido.

Fazend Ibicaba – Cordeirópolis, SP


Durante minha visita a Bananal, sabia que algumas fazendas tinham senzalas preservadas e temia como isso me afetaria emocionalmente e espiritualmente. Além disso, tinha receio de que a guia turística ou alguém do grupo fizesse comentários inadequados sobre o tema que estragassem meu dia. Era muita pressão. Não sei se vocês já se sentiram assim. Mas vamos ao pesadelo:

Na Fazenda dos Coqueiros, a primeira que visitamos, a senzala abaixo da casa tinha cerca de 1,20 m de altura. Um horror. Depois, fomos levados a um local chamado “castigo”. Segundo nossa guia turística, aquela fazenda evitava castigos físicos para não desvalorizar financeiramente as pessoas escravizadas, pois as cicatrizes faziam as pessoas perderem valor de mercado. Em vez disso, penduravam as pessoas em um poço, deixando-as quase se afogar em dejetos humanos vindos do banheiro enquanto gritavam. Isso servia como forma de assustar as outras pessoas escravizadas.


Na mesma fazenda, ouvimos uma história macabra: durante uma festa na casa grande, uma mulher escravizada passou mal e morreu, o que fez os serviços atrasarem na festa. A dona do casarão mandou enterrar essa mulher na porta da cozinha como punição, pois “estava proibido morrer em dia de festa” naquela casa.

Depois de ouvir essa história entramos na senzala e algumas pessoas tiravam fotos como se estivessem na Disney. Minha tia, coitada, confusa e sem má intenção ao ver o comportamento das pessoas, perguntou: “Quer tirar uma foto, Bia?”. Eu respondi, reativa e grossa: “TA LOUCA? Isso aqui é pior que tirar foto em cemitério”. Saí desse lugar enjoada, estressada, desnorteada e engolindo o choro pra não ser a chata no aniversário da minha tia.

Depois, visitamos a Fazenda Boa Vista, que se transformou em um hotel fazenda e ignora completamente a história das pessoas escravizadas, é a Disneylândia Colonial, lá foram gravadas as novelas Cabocla e também Sinha Moça.

Por fim, fomos à Fazenda Resgate, onde o local que antes era a senzala agora exibe objetos de tortura com uma placa indicando “banheiro” ao lado. Sai desnorteada de novo… tudo que eu tinha esquecido da outra fazenda, nessa voltou tudo, eu fechei os olhos e comecei a rezar, rezar, rezar. É surreal a falta de sensibilidade no Brasil ao tratar desse tema nos museus, em qualquer lugar. A maioria dos visitantes também carece de sensibilidade, o que impede a compreensão de como esse passado ainda está presente e impacta o nosso AQUI E AGORA.


Gente, eu fiquei muito mal. Tivemos um dia super família, mas à noite, só tive pesadelos. Quando entrei no ônibus, depois de ver tudo isso, de sentir essa dor pulsando dentro de mim, o enjoo e a angústia, entendi mais um dos motivos pelos quais algumas pessoas mestiças preferem se identificar como negras e aderir à hipodescendência, pode parecer óbvio racionalmente falando, mas eu senti nas minhas entranhas: É horrível demais se responsabilizar por esse passado completo. É horrível demais olhar para aqueles objetos de tortura e saber que meus ancestrais sangraram aqui, mas que meus outros ancestrais também fizeram sangrar aqui. É insano, enlouquecedor. É muito mais fácil se colocar apenas como vítima e apontar o dedo pro outro lado.

É literalmente enlouquecedor se você não tiver apoio ou não fizer um trabalho de consciência mestiça como o trabalho que procuro fazer aqui na Parditude. Você quer lutar por justiça, mas não quer ser reconhecido como alguém com sangue nas mãos. Quer estar apenas entre as vítimas, porque é muito desconfortável saber que os erros também correm no seu sangue. No presente, tenho plena consciência de que pardos estão em situação de vulnerabilidade ao lado dos negros, somos vítimas no contemporâneo e pessoas que nasciam mestiças eram vítimas no passado também. Mas olhando a nível ancestral, sabendo que você é misto, especialmente para quem tem famílias birraciais e convive com sua ancestralidade branca, é muito duro saber que você é fruto também desse pé. É muito mais fácil “fingir” que é negro. Eu tive bisavô dono de fazendas assim, não tão chiques, mas sei que é algo parecido, principalmente a mentalidade.

Dói muito, gente… Não é fácil.. NÃO É FÁCIL.
Mas minha escolha e da Parditude sempre serão reconhecer a realidade, não importa o quão dura seja, ao invés de permanecer na negação e na mentira. É a responsabilidade da consciência mestiça. Seus ancestrais brancos estavam cometendo atrocidades com os indígenas e ou negros. O que você está promovendo agora de diferente pra transformar a desigualdade que temos atualmente na realidade? Não são os ancestrais “deles” “do outro” de alguém fora… São os nossos. São os nossos também. É duro, mas é maduro reconhecer.

Por último, mas não menos importante, recomendo a todos que conheçam a Fazenda Quissamã, que tive a oportunidade de visitar em 2019. Completamente diferente das outras que mencionei, essa fazenda preserva APENAS as senzalas, que atualmente são quilombo de um povo preto que resiste, enquanto a casa grande está em ruínas. É um lugar incrível de visitar.

Quilombo da Machadinha – Quissamã, RJ
Casa Grande em Ruínas no quilombo da Machadinha – Rio de Janeiro, RJ

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