Noção se baseia em experiência concreta de pessoas mestiças, não em essencialismo.
Nesta semana, o historiador Roberto Pereira publicou o artigo “Neonegros e neofreyrianos podem retroceder debate racial do país” — talvez a análise mais dedicada que vi até agora sobre os desdobramentos do meu trabalho. Diante da relevância do texto e da honra que é ser diretamente mencionada, solicitei à Folha a possibilidade de replicá-lo.
É fundamental, para início de conversa, distinguir que a Parditude não se limita a mais uma pesquisa sobre mestiçagem: trata-se do primeiro projeto de pesquisa e movimento antirracista brasileiro centrado especificamente nas demandas e vivências multirraciais, elaborado a partir da enunciação dos próprios sujeitos mestiços. Diferentemente disso, a obra de Gilberto Freyre não foi um projeto antirracista, tampouco foi produzida a partir da experiência concreta dos mestiços enquanto sujeitos políticos narrando suas vivências.
O trabalho de Freyre foi uma leitura da formação racial brasileira marcada por um tom romantizado, idealizado e conciliatório, que suavizou as tensões do racismo sob a ótica de uma suposta harmonia entre as “três raças”. Há, portanto, um abismo epistemológico e político entre a Parditude e a narrativa freyriana: o que está em jogo não é apenas o objeto de análise — a mestiçagem —, mas com que finalidade política se constrói o discurso.
Outra correção fundamental a ser feita é que a análise proposta pela Parditude não se baseia em essencialismos, mas sim em uma perspectiva materialista. A experiência multirracial é concreta, e não uma abstração identitária. Ainda que a raça seja, do ponto de vista biológico, uma construção social, seus efeitos sociopolíticos são absolutamente reais — e se manifestam de forma diferente conforme a materialidade corporal dos sujeitos.
É inegável, por exemplo, que os corpos e as culturas de pessoas brancas de ancestralidade europeia se constituem de maneira diversa em relação aos corpos e culturas de pessoas negras de ascendência africana, por exemplo (ainda que o grupo “pardos” contenha outras misturas no Brasil). Quando pessoas desses grupos se cruzam, seus descendentes herdam traços que podem se inclinar mais para um lado ou compor uma síntese visível — é justamente nessa interseção concreta e ambígua que se configura a experiência da Parditude. Ser mestiço não é abstração: é corpo, é cotidiano, é contradição vivida.
Essa condição incide diretamente sobre nós: nas interações sociais, nos marcadores culturais, nas trajetórias institucionais e nas elaborações subjetivas. O que está em jogo não é uma escolha identitária livre entre “um lado ou outro”, mas o reconhecimento de uma experiência que é, em si, constituída pela mistura. Somos aquilo que a história produziu em nossos corpos. E isso precisa ser politicamente nomeado e epistemologicamente reconhecido.
A chamada “engenharia identitária” evocada por Pereira, ou o “convite” do movimento negro aos pardos para que se reconheçam como negros, merece um olhar mais atento. Trata-se de uma importação de categorias dos EUA — como aponta Kabengele Munanga em Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil —, adotada a partir dos anos 1970 com o intuito de unificar as lutas raciais no Brasil. Contudo, em sua forma implícita, essa convocação pode soar assim: “Reconheça como os brancos te maltrataram, então junte-se a nós e escolha apenas a sua parte negra ou indígena.”
Embora seja legítimo e necessário que pessoas mestiças se aliem às lutas negras e indígenas e muitas o fazem de forma comprometida, a questão é: se essa aliança só se concretiza à custa da negação de nossa completude, que tipo de pertencimento é esse?
Em um país como o Brasil, cuja história é atravessada por intensos processos de miscigenação — por vezes coercitivos, é verdade, mas não só —, exigir que sujeitos racializados pardos escolham apenas uma parte de sua herança é, em última instância, reforçar fantasias de pureza racial. E a ideia de pureza racial, mesmo quando mobilizada sob o signo da resistência, tem origem em sistemas de pensamento racialistas e excludentes, sendo uma das bases de discursos intolerantes e práticas genocidas ao redor do mundo.
Digamos que, ao receber esse “convite” do movimento negro, eu diga: agradeço, aceito lutar por justiça racial. Afirmo minha ancestralidade africana — apesar dos múltiplos tons de pele — aceito afirmar estéticas como o black power, os dreads, os penteados afro. Mas participarei dessa luta sem abrir mão de me reconhecer como mestiça, porque é isso que eu sou. Por que não pode? Porque, ao fazer essa escolha consciente, sou acusada de retroceder, ou alvo de silenciamento e desqualificação? Achei que fosse um convite — mas parece uma exigência.
Achei muito interessante o conceito de “neonegros” e a análise dos fenômenos nas redes sociais, mas interpreto de outra forma. Nas décadas a partir dos anos 1970, quando o movimento negro defendia uma identidade monorracial e rejeitava identidades mestiças, essas disputas aconteciam em círculos restritos de militância e academia — espaços ocupados por uma minoria engajada. A maior parte da população racializada nas periferias brasileiras, historicamente excluída do acesso à educação, estava imersa na luta diária por sobrevivência — e, também por isso, fora do alcance desses debates.
Foi só com a ampliação do acesso à internet, principalmente após a primeira década deste século, que essas conversas começaram a chegar à população de forma mais ampla. A partir disso, esses discursos binários sobre raça, o desprezo ao termo “mulato” ou “moreno”, passaram a circular na chamada “boca do povo”. Os aqui chamados “neonegros”, longe de serem amadores, são, na verdade, o resultado direto de uma causa concreta: a cultura popular brasileira reconhece os mestiços como distintos tanto dos negros quanto dos brancos. Quando se impõe uma lógica binária — ou branco, ou negro —, pessoas brancas nos jogam pra negros; pessoas negras, por sua vez, nos jogam pra brancos.
Quando “neonegros” negam o pertencimento racial de pessoas pardas, estamos diante do efeito prático da “engenharia” mencionada por Pereira. A imposição de um modelo binário e monorracial, que apaga a existência mestiça, ao ser disseminada amplamente, gerou este efeito colateral preocupante: o apagamento dos mestiços e sua exclusão dos debates raciais. Esse sintoma revela, de forma inequívoca, que o modelo identitário em questão não está apenas incompleto, está falhando em dar conta da complexidade racial brasileira. Se a ponte que nos acolheria se torna muro, algo falhou no projeto.
Essa situação precisa ser encarada como um sinal de alerta: podemos reconhecer os impasses, rever caminhos e construir coletivamente um debate racial mais honesto e inclusivo — ou continuaremos presos a disputas que pouco dialogam com a realidade vivida pela maioria?
Aqui quem fala é Beatriz Bueno da Parditude, Beatriz Bueno do Brasil.