Parditude e as políticas públicas – por Beatriz Bueno

Existe uma ideia distorcida de que uma pessoa mestiça, devido à sua múltipla origem, supostamente teria a possibilidade de ignorar a realidade corpórea

Ao abordar a implementação de políticas públicas voltadas para a parditude, surgem questionamentos importantes. Uma falácia comum é a ideia de que apenas a união de “pardos e pretos” como negros poderia viabilizar tais políticas. No entanto, é imprescindível reconhecer que pardos e negros podem ser agrupados como “grupos vulneráveis racialmente”, sem necessariamente serem rotulados como “negros”, especialmente considerando a existência de pardos de ascendência indígena, desvinculados da herança africana.

Existem fenótipos que transitam na fronteira entre a negritude e a parditude, como exemplificado pela atriz Taís Araújo. Indivíduos com essas características podem se identificar com a parditude, a negritude ou ambos, influenciados pela regionalidade e pelas experiências de contrastes raciais ao longo da vida. Compreender essas nuances é uma tarefa sensível, e é comum que muitas pessoas nesse fenótipo questionem a melhor maneira de se autodeclarar racialmente. No entanto, ao abordar a questão da multirracialidade, é importante aceitar que não existe uma definição exata, ao se tratar de experiências e fazer parte das ciências humanas, essas identidades são variáveis e relativas a uma série de fatores culturais.

Porém, para disputa de vagas em políticas públicas, fenótipos semelhantes ao de Taís Araújo são qualificados, independentemente de como a pessoa escolhe se identificar, seja como parte da negritude ou parditude. A maior complexidade surge quando lidamos com pessoas que se encontram na fronteira entre as categorias de pardo e branco, pois é nesse ponto que a discussão se intensifica. Essa definição desempenha um papel importante na determinação de quem possui privilégios e quem necessita de ações reparatórias devido à discriminação histórica. Entretanto, essa fronteira entre branco e pardo se manifesta tanto no contexto de reconhecer a parditude como uma experiência independente e separada da negritude, quanto no contexto atualmente aplicado, onde a categoria de pardos é associada à negritude.

A diferença reside no fato de que, ao considerar a parditude, a fronteira das discussões torna-se menor. A conversa deixa de se concentrar em rotular alguém como branco ou negro, que são dois extremos e se torna uma questão de compreender se as pessoas em questão são brancas ou pardas. Dessa forma, asseguraríamos o espaço dos negros com fenótipo predominantemente africano, que são “indiscutivelmente” negros de maneira justa e inequívoca, sem abrir margem para sensação de estarem sendo usurpados e que suas vagas estão sendo ocupadas por pessoas com fenótipo próximo ao dos brancos.

Em vez de abolir as categorias mestiças, temos a necessidade e a responsabilidade que são de todos os brasileiros, de ressignificá-las a partir de uma perspectiva de Consciência Mestiça e do reconhecimento do racismo, destruindo o Mito da Democracia Racial ao abandonar de vez a negação de nossa herança indígena e africana. Também não podemos ser reduzidos a uma massa manipulada a negar a condição de mestiçagem intrínseca em nossos corpos e histórias, para nos encaixarmos aos grupos indígenas ou negros. Se não somos aceitos integralmente, isso não é verdadeira inclusão e diversidade. Nossa história, seja ela rotulada como feliz ou infeliz, certa ou errada, é a nossa história.

Existe uma ideia distorcida de que uma pessoa mestiça, devido à sua múltipla origem, supostamente teria a possibilidade de ignorar a realidade corpórea – em um país em que o racismo predominantemente se baseia na aparência física – e pressupõe que essa pessoa pode escolher livremente se deve ou não incorporar todos os elementos de aparência física e herança em sua identidade, de acordo com as ideologias com as quais ela se identifica e com quais partes da história de seus ancestrais ela concorda ou quais rejeita.

Esses discursos se manifestam como se estivessem dizendo aos mestiços: “Observe como os brancos te trataram mal, junte-se a nós e escolha apenas a sua parte negra ou indígena.” No entanto, essa não é uma opção real, é um discurso de negação e alienação da história e da materialidade. A condição de mestiçagem é intrínseca para quem é mestiço, ela faz parte de sua subjetividade, condição social e muito mais. Principalmente no Brasil, país fortemente marcado pela miscigenação, induzir as pessoas mestiças a escolherem apenas um lado é ter aversão ao hibridismo, uma forma de racismo presente em muitas culturas intolerantes e ao combater o racismo não podemos compactuar ou promover teorias que indireta ou diretamente reforçam esses preconceitos.

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