Beatriz Bueno é, acima de tudo, uma sonhadora. Jovem escritora, pesquisadora, produtora de conteúdo e criadora do conceito de Parditude, um projeto inovador dedicado a compreender e dar visibilidade às vivências multirraciais no Brasil. Graduada em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense e atualmente mestranda no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da mesma instituição, Beatriz tem um interesse genuíno por estudos culturais e movimentos sociais, que orientam sua trajetória acadêmica e pessoal.
Durante a graduação, iniciou seu caminho na pesquisa com o apoio de uma Bolsa PIBITI voltada à inovação, onde desenvolveu, de forma independente, os primeiros passos de seu projeto. Publicou seu artigo "Impedidos de Entrar em Wakanda" no InterCom, o maior congresso de ciências da comunicação da América Latina, e concluiu sua monografia "Parditude, Mestiçagem e Identidade no Brasil: Uma Crítica à Rigidez Binária e suas Implicações para a População Parda", que fundamenta suas reflexões atuais.
Reconhecendo a importância de levar o debate além da academia, Beatriz encontrou nas redes sociais uma forma de democratizar suas pesquisas. Por meio da página @parditude no Instagram, canal no YouTube e TikTok ela oferece acolhimento e informações a pessoas pardas que enfrentam exclusão, crises de identidade e injustiças, como rejeições em bancas de heteroidentificação. Muitos relatam ter encontrado em seu trabalho alívio para dores profundas e até mesmo esperança diante de situações difíceis.
Beatriz acredita que o conhecimento deve ser acessível e que alinhar pesquisa e diálogo com a sociedade é um esforço necessário. Para ela, sua trajetória é apenas uma pequena contribuição dentro de uma luta maior, ao lado de tantos outros que se dedicam à busca por justiça racial. Seu trabalho tem como propósito honrar a diversidade do Brasil e ajudar a construir um futuro mais justo e equitativo para todos.
O que defendemos
Parditude é o primeiro projeto antirracista do Brasil com foco em pautas multirraciais, que surge da necessidade urgente de dar voz e visibilidade às pessoas mestiças. Este grupo, que representa cerca de 45,3% da população brasileira, segundo o IBGE, ainda carece de representatividade e reconhecimento em pesquisas acadêmicas e debates públicos. Estudos, como o de Vainer e Lopes (2018), evidenciam a escassez de investigações aprofundadas sobre as experiências cotidianas dos indivíduos mestiços no Brasil, especialmente no que se refere aos processos de racialização.
Enquanto a academia analisa amplamente os impactos da mestiçagem, seus sentidos e a maneira como influencia as relações raciais no país, faltam pesquisas que investiguem, de forma empírica, a construção e a vivência diária dos mestiços. A mestiçagem, historicamente, foi usada como justificativa para negar o racismo no Brasil, com o argumento falacioso de que “se há mistura racial, o racismo não pode existir”. Essa visão é enganosa e desconsidera a persistência de relações hierárquicas que marginalizam negros, indígenas e mestiços em várias esferas da sociedade, como em famílias, escolas e ambientes de trabalho.
A socióloga Sueli Carneiro destaca que pretos e pardos compartilham condições de vida similares, sendo igualmente subalternizados em relação aos brancos. A miscigenação, além disso, foi utilizada como uma estratégia de divisão, fomentando ódio e rejeição entre negros, indígenas e mestiços, o que levou muitos a buscar o “ideal de branqueamento” para se aproximar da branquitude.
Nos anos 1970, conforme Munanga, os movimentos negros brasileiros começaram a adotar o conceito de hipodescendência para redefinir a identidade negra, incluindo os mestiços com ascendência negra na categoria da negritude. Essa mudança gerou avanços importantes, como as cotas raciais, mas também trouxe desafios para adaptar esse conceito ao Brasil, devido à nossa cultura assimilacionista e à presença indígena no grupo “pardo”.
O conceito de hipodescendência, originado nos Estados Unidos para justificar a segregação racial e as leis anti-miscigenação, categoriza os mestiços como parte do grupo racial “inferior”, uma estratégia eugenista que busca preservar a "pureza" da brancura. Nos EUA, pessoas mestiças que assumem a identidade negra enfrentam crises existenciais, evidenciadas por filmes e séries como Ginny & Georgia e Colin in Black & White, além de documentários como Last Chance U, que retratam histórias reais de jovens mestiços confrontando suas identidades.
O movimento pela valorização da identidade multirracial nos Estados Unidos, impulsionado pelo sociólogo G. Reginald Daniel, tem crescido de forma consistente, ampliando o reconhecimento da condição mestiça e desafiando o racismo institucionalizado. Nesse contexto, o Parditude surge para responder a questões urgentes: como conciliar justiça racial com a valorização da multirracialidade e evitar reforçar conceitos eugenistas como a hipodescendência, que negam as vivências mestiças?
O racismo no Brasil não pode ser analisado com um olhar binário (brancos x negros). Como afirma Janaína Bastos, em 50 Tons de Racismo: “Quando olhamos apenas por essa lente, perdemos a complexidade da questão”.
Portanto, Parditude propõe:
Reconhecer a experiência mestiça sem fragmentá-la.
Resgatar as memórias indígenas e africanas.
Promover uma visão antirracista que respeite a diversidade e o contexto brasileiro.
A proposta de Parditude dialoga com teóricas como Gloria Anzaldúa, que introduz o conceito de Consciência Mestiça para compreender as fronteiras híbridas e complexas da identidade mestiça. Ao valorizar a multiplicidade e as contradições, a perspectiva de Anzaldúa oferece ferramentas valiosas para analisar os desafios e as possibilidades da identidade parda no Brasil, superando as limitações das teorias raciais binárias.
Como afirma Abiola Akandé Yayi:
“Não existe meio humano. Você é quem é. E se você não tiver satisfeito com seus antepassados brancos, procure fazer melhor que eles para mostrar que não é uma fatalidade ser descendente deles, mas não negue parte de você. Em África, não higienizamos o sangue, não excluímos nenhum antepassado.”
Além disso, Parditude é uma comunidade de acolhimento para pessoas mestiças, que frequentemente se veem excluídas tanto pelos brancos quanto pelos espaços afirmativos negros. Muitas dessas pessoas não se sentem plenamente parte de nenhum dos grupos. Nosso objetivo é criar um espaço seguro e terapêutico, onde possam se sentir validadas e amadas, porque, como afirmam estudiosos e terapeutas, quando indivíduos com dores semelhantes se encontram e se reconhecem, isso pode ser um processo de cura. E é isso que falta: um lugar seguro para aqueles que, mesmo enfrentando o racismo, se sentem isolados ou abandonados, simplesmente porque sua aparência mestiça não se encaixa nos modelos raciais convencionais.
Porque fazemos o que fazemos?
Vivemos, hoje, uma polarização no debate sobre questões raciais. De um lado, movimentos mestiços de direita negam a existência concreta do racismo, desconsideram o impacto das ideologias de branqueamento e se posicionam contra políticas afirmativas, como as cotas raciais. De outro, o movimento negro de esquerda, com sua relevante e histórica luta contra o racismo, adota a hipodescendência como solução única, desconsiderando a complexidade da realidade multirracial do Brasil, o país mais miscigenado do mundo. Essa abordagem tenta resgatar modelos monorraciais nos quais somos apenas brancos, indígenas ou negros, validando categorizações rígidas e puristas que não correspondem à diversidade multifacetada da nossa sociedade.
Nesse cenário, os corpos híbridos se tornam alvos de disputas. Muitos pardos enfrentam, além do racismo já comprovado estatisticamente, crises de identidade, exclusão e uma sensação constante de não pertencimento. Além disso, sofrem injustiças, como recusas em bancas de heteroidentificação, que frequentemente desconsideram a complexidade de suas vivências e seus fenótipos ambíguos.
Parditude surge como uma proposta de vanguarda para mostrar que é possível reconhecer e valorizar os corpos híbridos sem abrir mão de uma luta séria e comprometida contra o racismo. Nosso propósito é construir um caminho que acolha a pluralidade de experiências e promova uma justiça racial inclusiva e transformadora.
Nossa visão para o futuro
A proposta da Parditude é, diante da diversidade racial que caracteriza o Brasil, expandir a ideia de um movimento antirracista para um Movimento Racial mais amplo.
Nesse novo movimento, teriam espaço interseccionalidades como o Movimento Negro, o Movimento Indígena e o Movimento Multirracial, com o objetivo de acolher de maneira mais inclusiva os indígenas, os mestiços e suas múltiplas demandas. Essas demandas muitas vezes se entrelaçam, mas também podem apresentar divergências, e é preciso espaço para que sejam ouvidas de forma justa e representativa.
Como Djamila Ribeiro destaca ao abordar a interseccionalidade no feminismo negro, interseccionar lutas sociais não implica criar movimentos sectários ou divisivos, como alguns acreditam, mas sim reconhecer as diferenças existentes para, a partir dessa aceitação, combater as divisões que perpetuam as desigualdades. A união na diversidade é essencial, pois permite que todas as vivências e realidades sejam respeitadas e reconhecidas, ao contrário da homogeneização, que apaga as especificidades e complexidades das diversas experiências, como tem ocorrido com a população parda.
Diferenciar não significa criar separações ou hierarquias, mas sim reconhecer as singularidades e as particularidades de cada realidade. Não se trata de dividir, mas de compreender as diversas experiências de maneira a respeitar e valorizar as diferenças. Ao reconhecermos essas diferenças, sabemos quem é cada pessoa e cada grupo, e o nosso dever é uni-los em harmonia, respeitando suas especificidades, sem reduzir ou diminuir nenhuma delas. Ao reconhecer a vivência multirracial, podemos construir uma frente mais forte e coesa para combater o racismo, respeitando as particularidades de cada vivência, mas unindo-os pela luta comum contra as injustiças sociais.
Ao entender que as interseccionalidades não devem ser vistas como barreiras, mas como formas de fortalecer a luta antirracista, podemos criar um movimento que seja mais acolhedor e capaz de enfrentar as injustiças raciais de maneira mais completa e eficaz.
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